quarta-feira, 29 de junho de 2011

Konstantinos Kaváfis

Tenho  observado com frequência a pouca atenção que as pessoas dão às palavras. Explico-me. Um homem simples (com simples não quero dizer parvo, e sim não-eminente) tem uma opinião, critica uma instituição ou crença geral; sabendo que a maioria das pessoas não pensa assim, cala-se, na suposição de que não vale a pena falar, pois o que pudesse dizer não mudaria coisa alguma. Trata-se de um erro grave. Eu ajo de outro modo. Por exemplo, sou contra a pena de morte. Sempre que me aparece uma oportunidade, manifesto-me a respeito, não porque ache que, com isso, o Estado a vá abolir, mas porque estou convencido de que assim contribuo para o triunfo das minhas ideias. Pouco me importa que ninguém concorde comigo. O que eu disse não foi em pura perda. Talvez alguém repita minhas palavras e elas cheguem a ouvidos que as ouçam e as perfilhem. Quem sabe se futuramente algum daqueles que ora discordam de mim não se vai lembrar, numa ocasião propícia, daquilo que eu disse e convencer-se ou pelo menos sentir abalada sua opinião em contrário. - O mesmo vale para diversas outras questões sociais, das que exigem ação. Reconheço que sou tímido e não sei agir. Por isso limito-me a falar. Não acho, porém, que minhas palavras sejam em vão. Outro agirá, mas essas palavras - de mim, o tímido, - terão facilitado a ação e limpado o terreno.

09/11/1902

Da Liberdade

Importa-me muito o que os outros homens são, porque por mais independente que me julgue ou que pareça pela minha posição social - mesmo que eu fosse papa, czar, imperador ou até primeiro ministro -, não deixaria de ser o produto dos últimos entre eles; se eles são ignorantes, miseráveis, escravos, a minha existência é determinada pela sua ignorância, pela sua miséria e escravidão. Eu, por exemplo, sou um homem esclarecido pelas suas inteligências e sou um tolo pelas suas tolices; se iracundo, sou escravo da sua escravatura; se rico, tremo com a sua miséria; se privilegiado empalideço diante da sua justiça. Mesmo que eu queira ser livre, não posso. Porque à minha volta ainda nenhum homem quer ser livre e não o querendo, eles transformam-se contra mim, em instrumentos de opressão. (...)

Só serei verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, forem igualmente livres, de modo que quanto mais numerosos forem os homens livres que me rodeiam e quanto mais profunda e maior for a sua liberdade, tanto mais vasta, mais profunda e maior será minha liberdade. Eu só posso considerar-me completamente livre quando a minha liberdade ou, o que é a mesma coisa, quando a minha dignidade de homem, o meu direito humano refletidos pela consciência igualmente livre de todos me forem confirmados pelo assentimento de todos. A minha liberdade pessoal, assim confirmada pela liberdade de todos, estende-se até o infinito. (...)

A liberdade dos indivíduos não é um fato individual. É um fato, um produto coletivo. Nenhum homem conseguiria ser livre isolado e sem a contribuição de toda a sociedade humana. (...)

Imaginem o homem dotado pela natureza com as faculdades mais geniais, afastado desde a tenra infância da sociedade humana, num deserto. Se ele não perecesse miseravelmente, o que seria o mais provável, ficaria um bruto, um macaco privado da palavra e do pensamento, pois o pensamento é inseparável da palavra: ninguém consegue pensar sem linguagem. Mas o que é a palavra? É a comunicação, é a conversação entre indivíduos. O homem animal só se transforma em ser humano, isto é, pensante, por esta conversão, só pela conversação. A sua individualidade humana, a sua liberdade, é pois produto da coletividade.

O homem só se emancipa da pressão tirânica exercida sobre ele pela natureza exterior com o trabalho coletivo; pois o trabalho individual, impotente e estéril, nunca saberia vencer a natureza. (...)

O homem só se torna verdadeiramente homem quando respeita e ama a humanidade e a liberdade de todos, e quando a sua humanidade e liberdade são respeitadas, amadas, suscitadas e criadas por todo. (...)




domingo, 12 de junho de 2011

O cantor

Quando Alfredo Zitarrosa morreu em Montevidéu, seu amigo Juceca subiu com ele até os portões do Paraíso, para não deixá-lo sozinho naqueles trâmites.
E quando voltou Juceca nos contou o que havia escutado:
São Pedro perguntou nome, idade, ofício.
- Cantor - disse Alfredo.
E o porteiro quis saber: 
- Cantor de quê?
- Milongas - disse Alfredo
São Pedro não conhecia. Foi picado pela curiosidade, e ordenou:
- Cante !
Alfredo cantou. Uma milonga, duas, cem.
São Pedro queria que aquilo não parasse nunca.
A voz de Alfredo, que tanto tinha feito vibrar o chão, estava fazendo vibrar os céus.
E Deus, que andava ali pastoreando nuvens, esticou a orelha.
E Juceca contou que aquela foi a única vez em que Deus não conseguiu saber quem era Deus...

Os Ninguéns

As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a
pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova
a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje,
nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte,
por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce,
ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vasoura.
 Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
 Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos
e mal pagos:
 Que não são, embora sejam.
 Que não falam idiomas, falam dialetos.
 Que não praticam religiões, praticam superstições.
 Que não fazem arte, fazem artesanato.
 Que não são seres humanos, mas recursos humanos.
 Que não têm cultura, e sim folclore.
 Que não têm cara, têm braços.
 Que não têm nome, têm números.
 Que não aparecem na história universal, e aparecem nas  páginas policiais da imprensa local.
 Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.


                            Eduardo Galeano
                          (O Livro dos Abraços)

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indescupavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado mas uma infâmia;
Que contasse não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente neste mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

                     Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa

Um poema de Jules Laforgue

Montevidéu, 1860/ Paris, 1887

MEDIOCRIDADE



No infinito coberto de eternas belezas,
Como átomo perdido, incerto, solitário,
Um planeta chamado Terra, dias contados,
Voa com os seus vermes sobre as profundezas.

Filhos sem cor, febris, ao jugo do trabalho,
Marchando, indiferentes ao grande mistério,
E quando um dos seus é enterrado, já sérios,
Saúdam-no. Do torpor não são arrancados.

Viver, morrer, sem desconfiar da história
Do globo, sua miséria em eterna glória,
Sua agonia futura, o sol moribundo.

Vertigens de universo, todo o céu só festa!
Nada, nada, terão visto. Partem do mundo
Sem visitar sequer o seu próprio planeta.

Tradução de Régis Bonvicino

EURÍPEDES


“A morte não é nada. 
Mas viver derrotado 
e sem glória é morrer 
diariamente.” 

Para que servem as palavras

Tem um filme de terror em que ocorre um blecaute num cinema.
Ao retornar a luz, a maioria das pessoas da sessão haviam desaparecido.
Os sobreviventes pouco sabem, a princípio, o porquê daquilo.
Mas percebem que o fenômeno se deu no mundo todo.
Começam a entender que há uma escuridão, que cada vez avança mais e mais.
O sol, a cada dia que passa, surge mais tarde e a noite se prolonga.
Essa escuridão tem por finalidade encurralá-los e, por fim, devorá-los.
Começam a perceber também que a única coisa que os pode salvar é alguma luz que, porventura, consigam manter acesa.
Um a um são tragados pela sombra, enquanto correm desesperados atrás de lanternas e postes de luz, faróis de carros e baterias portáteis.
É assim que acontece.
Essa luz é tua humanidade.
E essa sombra é a barbárie se aproximando.
Tua vida vale menos que teus pertences e é facilmente tirada por causa de uma discussão.
Essa pequena e preciosa luz, que levamos milênios para criar desde que nos arrastamos das obscuras cavernas da nossa animalidade, está desaparecendo.
Sendo engolida pela ignorância, pela indiferença e pela esperteza daqueles que já perderam a sua chama.
E mesmo aqueles que estão no mundo apenas pela festa, quando esta acaba – se não estão bêbados o suficiente –, sentem o perigo a rondá-los, mesmo em seus carros.
Por isso entram assustados para dentro de seus condomínios.
Esperando ali estarem a salvo.
Esquecem eles que castelos já foram postos abaixo.
Enfim – somos nós correndo com uma lanterna na mão e cuja pilha está enfraquecendo.
Mas, como os personagens do filme, precisamos continuar nessa corrida mesmo que a escuridão nos engula.
Talvez encontremos mais luzes pela frente e consigamos espantar as sombras.
Você tem pilhas?