quarta-feira, 25 de maio de 2011

Diálogo Imaginário

(Estória daqueles que estão condenados à esperança.)

- Você está consciente, meu filho, do que está fazendo?
- Estou sim, meu pai.
- Você sabia que andam dizendo que você tem piolho, não sabe andar de bicicleta e quer acabar com a arte contemporânea?
- Sei, sim, meu pai.
- Você sabe qual a razão disto, meu filho?
- Desconfio, meu pai.
- Você sabe que nunca deveria ter mexido nesse vespeiro?
- Sei sim, meu pai, mas não resisti.
- Não resistiu, por que , meu filho?
- Por que cansei de hipocrisia, meu pai.
- E que hipocrisia é essa, meu filho?
- Ah, isso de dizer que qualquer coisa que alguém chama de arte, é arte.
- Só isso, meu filho?
- Não, meu pai, como dizem lá no tráfico - "tá tudo dominado": estão no
controle de bienais, galerias, escolas de arte, o diabo a quatro.
- Do diabo a quatro, meu filho?
- E, meu pai, do céu e do inferno, acham que são donos da teoria, praticam o pensamento único, a arte única... aí, não aguentei mais!
- Mas você não tem ido a museus, visto exposições, meu filho?
- Tenho, meu pai, e esse é o problema.
- Você sabia que não basta ir a museus, meu filho?
- Sabia, meu pai.
- Você sabia que não basta ler sobre arte, meu filho?
- Sabia, meu pai.
- Você sabia que existem também os burocratas da arte, que controlam os
aparelhos culturais?
- Sei sim, meu pai.
- Você estava pronto para ser crucificado, meu filho?
- Estava meu pai, mas claro que preferia outras opções.
- Você disse para eles que a história da arte não começa nem termina com Klee, Kandinski, Malevitch e Duchamp?
- Disse, meu pai.
- Você disse para eles que a arte brasileira também não começa nem termina com Ligia Clark e Hélio Oiticica?
- Disse, meu pai.
- Você sabe que isso é insuportável na religião deles?
- Sei sim, meu pai.
- E o que mais você disse, meu filho?
- Ah, Já nem sei, disse que quem ama o feio bonito lhe parece. O que seria do amarelo se não fosse o mau gosto...
- Você sabe que isto está parecendo diálogo de Beckett em "O Fim de Jogo", meu filho?
- Sei, meu pai, mas na verdade é uma paródia/paráfrase/apropriação de
Clarice Lispector nas últimas páginas de "A Maçã no Escuro".
- Você sabe que a vida é um combate que os fracos abate e aos fortes só pode exaltar?
- Sei sim, meu pai.
- Você sabe que essa frase está errada, meu filho?
- Desconfiava, meu pai.
- Você sabe que, ao contrário, o mundo é dos audaciosos, dos arrivistas, dos que acham que qualquer coisa é arte...e do Bush?
- Sei sim, meu pai.
- Você sabe que em vez de dizer a verdade e revelar sentimentos, o que dá
certo é fazer alianças e exercer o poder, qualquer que seja?
- É o que estou constatando, meu pai.
- Você lhes disse aquela frase de Sócrates, meu filho?
- Sim, meu pai: "a verdade está entre os homens e não com os homens."
- E eles não entenderam isto, meu filho?
- Acho que não, meu pai, porque Sócrates se referiu aos "homens" e há mulheres nisto.
- Sócrates era pré-feminista, meu filho. Corrija a frase e me diga: Você sabia que o ser humano é uma porcaria, meu filho?
- Sabia sim, meu pai.
- Você sabia que você também é uma porcaria?
- Sabia sim, meu pai, mas o senhor inclui aí também o Duchamp e o Warhol?
- Você sabe que pregar a revisão de conceitos e pré-conceitos é tão perigoso quanto ter esperança?
- Sei sim, meu pai.
- O que é que Enzensberger disse sobre a vanguarda e os carneiros, meu filho?
- Que qualquer carneiro do rebanho julga-se carneiro-guia.
- E o que mais, meu filho?
- "Por que me abandonaste se sabias que eu sou fraco, se sabias que não sou Deus?"
- Isto está parecendo Bíblia misturado com Drummonnd, meu filho, e o que
quero saber é se você ainda tem alguma esperança?
- Alguma, meu pai.
- Você está consciente de que, com a esperança, você nunca mais terá repouso, meu filho?
- Estou sim, meu pai.
- Você está consciente de que, com a esperança você perderá todas as
outras armas, meu filho?
- Estou sim, meu pai.
- E que sem o cinismo você estará nu?
- Sei sim, papai.
- Então você disse pra eles que o rei está nu, meu filho?
- Disse, meu pai.
- Mas você não sabia que com isto levaria à falência a alfaiataria do imaginário real?
- Sabia, meu pai.
- Você sabe que uma pessoa pode encalhar numa palavra e perder anos de vida?
- Sei sim, meu pai.
- E você foi dizer a eles que eles encalharam na palavra "modernidade", "pós-modernidade" e "contemporâneo"? Além de incauto, você é muito pretensioso, meu filho.
- Eu sei, meu pai.
- Você está pronto para saber que, olhadas de perto, as coisas não têm forma, e que olhadas de longe as coisas não são vistas?
- Isso é de Clarice ou de algum critico de arte, meu pai?
- Cale a boca, meu filho. Quer dizer que depois de tudo o que tem visto, então, você ainda tem
esperança, meu filho?
- Tenho sim, meu pai.
- Então, vai, meu filho, ordeno-te que sofras a esperança.


                              Affonso Romano de Sant'Anna
                               31 de agosto de 2002 

Nenhum comentário:

Postar um comentário