quarta-feira, 25 de maio de 2011

DEFESA DOS LOBOS CONTRA OS CORDEIROS


Querem que o abutre coma miosótis?
O que exigem do chacal,
do lobo, que mude de pele? Querem
que ele mesmo extraia seus dentes?
O que é que não apreciam
nos comissários políticos e nos papas,
por que olham, feito burros,
o vídeo mentiroso?

Quem costura a faixa de sangue
nas calças do general? Quem
trincha, diante do agiota, o capão?
Quem pendura, orgulhoso, a cruz de lata
sobre o umbigo que ronca de fome? Quem
aceita a propina, a moeda de prata,
o centavo para calar-se? Há
muitos roubados, poucos ladrões; quem
os aplaude, quem
lhes põe insígnias no peito, quem
é sequioso de mentiras?

Olhem-se no espelho: covardes,
temendo a fadiga da verdade,
sem vontade de aprender, entregando
o pensar aos lobos
um anel no nariz como adorno preferido,
nenhuma ilusão burra o bastante, nenhum consolo
barato o suficiente, cada chantagem
é ainda clemente demais para vocês.

Ó cordeiros, irmãs
são as gralhas comparadas a vocês:
vocês se arrancam os olhos uns aos outros.
Fraternidade reina
entre os lobos:
andam em alcateias.

Louvado sejam os salteadores: vocês
convidam ao estupro
deitando-se no leito preguiçoso
da obediência. Mesmo gemendo
vocês mentem. Querem
ser devorados. Vocês
não mudam o mundo.

Do livro "Eu falo dos que não falam", do poeta alemão
Hans Magnus Enzensberger. Ed. Brasiliense, 1985.

Diálogo Imaginário

(Estória daqueles que estão condenados à esperança.)

- Você está consciente, meu filho, do que está fazendo?
- Estou sim, meu pai.
- Você sabia que andam dizendo que você tem piolho, não sabe andar de bicicleta e quer acabar com a arte contemporânea?
- Sei, sim, meu pai.
- Você sabe qual a razão disto, meu filho?
- Desconfio, meu pai.
- Você sabe que nunca deveria ter mexido nesse vespeiro?
- Sei sim, meu pai, mas não resisti.
- Não resistiu, por que , meu filho?
- Por que cansei de hipocrisia, meu pai.
- E que hipocrisia é essa, meu filho?
- Ah, isso de dizer que qualquer coisa que alguém chama de arte, é arte.
- Só isso, meu filho?
- Não, meu pai, como dizem lá no tráfico - "tá tudo dominado": estão no
controle de bienais, galerias, escolas de arte, o diabo a quatro.
- Do diabo a quatro, meu filho?
- E, meu pai, do céu e do inferno, acham que são donos da teoria, praticam o pensamento único, a arte única... aí, não aguentei mais!
- Mas você não tem ido a museus, visto exposições, meu filho?
- Tenho, meu pai, e esse é o problema.
- Você sabia que não basta ir a museus, meu filho?
- Sabia, meu pai.
- Você sabia que não basta ler sobre arte, meu filho?
- Sabia, meu pai.
- Você sabia que existem também os burocratas da arte, que controlam os
aparelhos culturais?
- Sei sim, meu pai.
- Você estava pronto para ser crucificado, meu filho?
- Estava meu pai, mas claro que preferia outras opções.
- Você disse para eles que a história da arte não começa nem termina com Klee, Kandinski, Malevitch e Duchamp?
- Disse, meu pai.
- Você disse para eles que a arte brasileira também não começa nem termina com Ligia Clark e Hélio Oiticica?
- Disse, meu pai.
- Você sabe que isso é insuportável na religião deles?
- Sei sim, meu pai.
- E o que mais você disse, meu filho?
- Ah, Já nem sei, disse que quem ama o feio bonito lhe parece. O que seria do amarelo se não fosse o mau gosto...
- Você sabe que isto está parecendo diálogo de Beckett em "O Fim de Jogo", meu filho?
- Sei, meu pai, mas na verdade é uma paródia/paráfrase/apropriação de
Clarice Lispector nas últimas páginas de "A Maçã no Escuro".
- Você sabe que a vida é um combate que os fracos abate e aos fortes só pode exaltar?
- Sei sim, meu pai.
- Você sabe que essa frase está errada, meu filho?
- Desconfiava, meu pai.
- Você sabe que, ao contrário, o mundo é dos audaciosos, dos arrivistas, dos que acham que qualquer coisa é arte...e do Bush?
- Sei sim, meu pai.
- Você sabe que em vez de dizer a verdade e revelar sentimentos, o que dá
certo é fazer alianças e exercer o poder, qualquer que seja?
- É o que estou constatando, meu pai.
- Você lhes disse aquela frase de Sócrates, meu filho?
- Sim, meu pai: "a verdade está entre os homens e não com os homens."
- E eles não entenderam isto, meu filho?
- Acho que não, meu pai, porque Sócrates se referiu aos "homens" e há mulheres nisto.
- Sócrates era pré-feminista, meu filho. Corrija a frase e me diga: Você sabia que o ser humano é uma porcaria, meu filho?
- Sabia sim, meu pai.
- Você sabia que você também é uma porcaria?
- Sabia sim, meu pai, mas o senhor inclui aí também o Duchamp e o Warhol?
- Você sabe que pregar a revisão de conceitos e pré-conceitos é tão perigoso quanto ter esperança?
- Sei sim, meu pai.
- O que é que Enzensberger disse sobre a vanguarda e os carneiros, meu filho?
- Que qualquer carneiro do rebanho julga-se carneiro-guia.
- E o que mais, meu filho?
- "Por que me abandonaste se sabias que eu sou fraco, se sabias que não sou Deus?"
- Isto está parecendo Bíblia misturado com Drummonnd, meu filho, e o que
quero saber é se você ainda tem alguma esperança?
- Alguma, meu pai.
- Você está consciente de que, com a esperança, você nunca mais terá repouso, meu filho?
- Estou sim, meu pai.
- Você está consciente de que, com a esperança você perderá todas as
outras armas, meu filho?
- Estou sim, meu pai.
- E que sem o cinismo você estará nu?
- Sei sim, papai.
- Então você disse pra eles que o rei está nu, meu filho?
- Disse, meu pai.
- Mas você não sabia que com isto levaria à falência a alfaiataria do imaginário real?
- Sabia, meu pai.
- Você sabe que uma pessoa pode encalhar numa palavra e perder anos de vida?
- Sei sim, meu pai.
- E você foi dizer a eles que eles encalharam na palavra "modernidade", "pós-modernidade" e "contemporâneo"? Além de incauto, você é muito pretensioso, meu filho.
- Eu sei, meu pai.
- Você está pronto para saber que, olhadas de perto, as coisas não têm forma, e que olhadas de longe as coisas não são vistas?
- Isso é de Clarice ou de algum critico de arte, meu pai?
- Cale a boca, meu filho. Quer dizer que depois de tudo o que tem visto, então, você ainda tem
esperança, meu filho?
- Tenho sim, meu pai.
- Então, vai, meu filho, ordeno-te que sofras a esperança.


                              Affonso Romano de Sant'Anna
                               31 de agosto de 2002 

segunda-feira, 9 de maio de 2011

FESTA

Atrás do balcão, o rapaz de cabeça pelada e avental olha o crioulão de roupa limpa e remendada, acompanhado de dois meninos de tênis brancos, um mais velho e outro mais novo, mas ambos com menos de dez anos.
Os três atravessam o salão, cuidadosa mas resolutamente, e se dirigem para o cômodo dos fundos, onde há seis mesas desertas.
O rapaz de cabeça pelada vai ver o que eles querem. O homem pergunta em quanto fica uma cerveja, dois guaranás e dois pãezinhos.
Duzentos e vinte.
O preto concentra-se, aritmético, e confirma o pedido.
Que tal o pão no molho da almôndega? Fica muito mais gostoso.
O homem olha para os meninos.
O preço é o mesmo informa o rapaz.
Está certo.
Os três sentam-se numa das mesas, de forma canhestra, como se o estivessem fazendo pela primeira vez na vida.
O rapaz de cabeça pelada traz as bebidas e os copos e, em seguida, num pratinho, os dois pães com meia almôndega cada um. O homem e (mais do que ele) os meninos olham para dentro dos pães, enquanto o rapaz cúmplice se retira.
Os meninos aguardam que a mão adulta leve solene o copo de cerveja até a boca, depois cada um prova o seu guaraná e morde o primeiro bocado de pão.
O homem toma a cerveja em pequenos goles, observando criteriosamente o menino mais velho e o menino mais novo absorvidos com o sanduíche e a bebida.
Eles não têm pressa. O grande homem e seus dois meninos. E permanecem para sempre, humanos e indestrutíveis, sentados naquela mesa.

Wander Piroli, in "Para gostar de ler" - vol. 9 - Contos